11 de outubro de 2012

A espada de Dâmocles entre o STF e a imprensa.

Amplamente noticiada pela televisão, jornais, sites, blogs, assim como exaustivamente curtida,  compartilhada e twitada nas redes sociais, a condenação de José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e demais denunciados do núcleo político do “mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal, pode ser um bom termômetro para medir o clima que envolve a deliberação de um tema com significativa repercussão política na Corte e também para aferir o estado febril de alguns veículos da imprensa nacional.

Não é o caso aqui de discutir a justiça da decisão. Essa é uma dimensão que escapa aos espectadores do julgamento, e acredito que também aos próprios julgadores ao se depararem diante de um caso tão intrincado quanto avassalador de corrupção que atinge a regularidade do processo legislativo e a liturgia esperada dos que ocupam um mandato parlamentar e cargos do primeiro escalão do governo.

Também não é o objetivo aqui questionar a validade da interpretação da chamada “teoria do domínio do fato”, difundida no Brasil por obra do penalista argentino Eugenio Raul Zaffaroni, que foi utilizada pelo ministro Celso de Mello para fundamentar a condenação de Dirceu, sob o protesto dos ministros Lewandowski e Dias Toffoli.

Nestas breves linhas, tampouco é o caso de pôr em debate a adequação do veredicto. Desconhecendo a prova dos autos, mas confiando nos ministros e na instituição, o momento é de reconhecer a legitimidade da condenação e deixar o Tribunal cumprir sua tarefa de dosar as penas e terminar o julgamento, o que não impossibilita aos condenados a busca de sua reforma na própria Corte ou fora dela, acaso encontrem na violação de tratado ou convenção internacional o motivo para a absolvição.

Trata-se, entretanto, de alertar para a necessidade de entender que significado a condenação de líderes políticos e representantes do mais alto degrau do partido do governo (anterior e atual) pode adquirir na autocompreensão do STF em seu papel de garante das liberdades republicanas fundamentais. E mais, de que maneira a mídia desempenha a função de informar sobre o julgamento numa sociedade que se pretende democrática, digna de igual respeito e consideração em direitos e obrigações.

A se levar em conta o histórico(1) das condenações de parlamentares na nossa Suprema Corte, retrospecto em parte responsável pela descrença na capacidade do sistema jurídico de colocar políticos atrás das grades, o julgamento do “mensalão” pode projetar-se como paradigma. Não se sabe, porém, se para o bem ou mal do Estado Democrático de Direito.

A delicadeza da situação põe Têmis, a deusa da justiça e das leis humanas na mitologia grega, sob a espada de Dâmocles(2). Se tivermos um resultado sem lastro nas provas reunidas nos autos ou com inobservância à ampla defesa, fragilizada estará a garantia do devido processo e com ele o Estado de Direito; por outro lado, se do resultado sufragado pelo Supremo derivar a descrença generalizada na força do direito como meio de realização das expectativas de justiça, abalado estará o Estado Democrático.

Registre-se que a condenação ora realizada pode simbolizar para o imaginário coletivo a consolidação da independência do Judiciário em relação à política partidária. O Tribunal agora seria capaz de afirmar a autonomia do direito frente à cúpula do poder. Um marco institucional para a atuação de uma Corte que já foi solenemente desautorizada pelo chefe do Executivo durante o Estado Novo(3), e sofreu duro golpe durante o regime militar(4), quando foram cassados três dos seus mais brilhantes ministros .

Essa parece uma versão atraente para uma composição em que boa parte dos ministros tem se notabilizado pela discussão de causas de grande repercussão social, a exemplo da viabilidade de pesquisas científicas com células tronco embrionárias; a interrupção da gravidez de feto anencefálico; a união civil homoafetiva e a constitucionalidade do regime de cotas para ingresso no ensino superior, todas acompanhadas com grande interesse pelo público através da TV Justiça.

A forma de condução do julgamento do “mensalão”, os conflitos entre relator e revisor, os debates, a leitura de cada voto pode revelar muito mais do que posições jurídicas convertidas na condenação ou absolvição dos réus.

Talvez seja o caso de observar em que medida o Supremo Tribunal Federal deixa-se ver pelas lentes da cobertura televisiva e matérias publicadas quase que instantaneamente à ocorrência dos fatos. Qual papel esse olhar da mídia e para a mídia tem na autocompreensão da Corte como instituição: a de uma instância predominantemente política, comprometida com a realização de valores virtuosos e agindo em nome da legitimação de uma democracia em que representados se vêem na atuação de representantes; ou como um foro independente dos anseios populares e midiáticos, cuja obrigação é fazer prevalecer o direito dos réus ao julgamento justo e consonante com as provas dos autos.

De uma avaliação que tenha de lidar com características tão complexas e entrelaçadas das esferas do direito e da política, quanto são as envolvidas num julgamento como o do “mensalão”, não se pode esperar a pureza de opção por um lado ou outro. No entanto, observar as sutilezas que cercam os votos de cada ministro e a seletividade informativa presente em cada matéria sobre as sessões pode significar mais do que a histórica condenação de políticos. Num país onde a impunidade estimula a corrupção, pode, especialmente, ajudar-nos a compreender melhor o funcionamento do Judiciário e da imprensa, fator indispensável para nos posicionar sobre o que demandar de ambos na construção da democracia



1. Desde a redemocratização, o STF condenou apenas seis parlamentares. O primeiro deles foi o Dep. José Gerardo Oliveira de Arruda Filho (PMDB/CE), na Ação Penal n° 409, relatada pelo ministro Ayres Britto e julgada em 13.05.2010, pela malversação de recursos de convênios quando o acusado era prefeito do Município de Caucaia/CE. A pena de 2 anos e 2 meses de reclusão foi substituída por duas restritivas de direitos. Em seguida foram condenados os deputados Cássio Taniguchi (DEM/PR); José Tatico (PTB/GO); Natan Donandon (PMDB/RO); Asdrúbal Bentes (PMDB/PA) e Abelardo Camarinha (PSB/SP). 

2. O mito conta o episódio em que Dionísio, Rei de Siracusa, cansado de ouvir os excessivos louvores e da inveja de Dâmocles, propôs que trocassem de lugar por um dia. Levado pelos serviçais ao palácio e em meio aos banquetes, Dâmocles de repente enrijeceu-se e ficou pálido, percebeu que sobre a sua cabeça havia uma espada, presa ao teto por apenas um fio de cabelo, cuja lâmina apontava para seus olhos. Então, desesperado, reconheceu que Diosnísio não tinha apenas mordomias de Rei, mas riscos gigantescos, deixando de importuná-lo a partir de então.

3. O art. 96 da Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937 previa a hipótese de suspensão dos efeitos de decisões do STF que contrariassem o “bem-estar do povo ou a promoção do interesse nacional de alta monta”, por deliberação de dois terços do Congresso. Com o parlamento fechado pelo autoritarismo do Estado Novo, o próprio Getúlio Vargas, através do Decreto-lei n° 1.564, de 05.09.1939,  suspendeu decisão do STF que declarava inconstitucional a sujeição de vencimentos pagos pelos cofres estaduais e municipais ao imposto de renda. 

4. Com um decreto editado com base no AI-5, em 16 de janeiro de 1969 foram aposentados compulsoriamente pelo governo de Arthur da Costa e Silva os ministros: Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. Em protesto, renunciou o então Presidente do Tribunal, Gonçalves de Oliveira e pediu aposentadoria o ministro mais antigo da Corte Lafayete de Andrada.

       

6 de outubro de 2012

A Constituição dos tubarões.


Por ocasião da passagem do vigésimo quarto aniversário da nossa Constituição, vale a pena ouvir a mensagem acima e refletir sobre o papel do constitucionalismo no mundo e no Brasil. Trata-se de um poema antológico de Bertold Brecht, aqui na voz de Antonio Abujamra, chamado "Se os tubarões fossem homens".

A analogia metafórica entre a vida marinha e a sociedade humana é de uma sutileza crítica muito sagaz, descreve pontos de contato entre nossa cultura e a inigualável força dos tubarões como soberanos aquáticos, levantando questões sobre as diversas formas de subjetivação pelas "redes" cuidadosamente tecidas pelas estruturas mais difundidas das relações sociais.

Um texto brilhante, que toca o sentido da necessidade permanente de questionamento das razões da obediência e se coloca entre a legitimidade da ordem e a autoridade de quem manda, paradoxo inescapável da fundação do constitucionalismo e da organização das nossas instituições.

Vale a pena ler, assistir e refletir sobre a mensagem de Brecht.