26 de fevereiro de 2010

Futuro ou passado?

"O futuro tortura-nos e o passado acorrenta-nos. Eis porque o presente nos foge." Gustavo Flaubert

Algo sobre o que pensar nesse final de semana.

23 de fevereiro de 2010

Sem meias verdades...

Como todo início de campanha marca em que lado boa parte da imprensa conservadora está, ainda que veladamente e sob a retórica da imparcialidade, torna-se necessário manter os olhos bem abertos.
Especificamente sobre o suposto inchaço da máquina da Administração federal que teria sido, para "O Globo" decorrente de "clientelismo político e compadrio ideológico" (ainda que com a realização de concursos públicos, vai entender...), reproduzo abaixo texto do Procurador da Fazenda Nacional Paulo Cesar Negrão de Lacerda rebatendo as "meias verdades" do Editorial daquele importante veículo de comunicação.

Guerra eleitoral: a verdade é a primeira vítima.

Por Paulo Cesar Negrão de Lacerda

O jornal “O Globo”, de 21 de fevereiro, lançou um dos mais violentos ataques às chamadas carreiras de Estado do Poder Executivo Federal de que se tem notícia.Busca o jornal demonstrar um suposto inchaço da máquina pública federal, que seria permeado por “clientelismo político e compadrio ideológico”, segundo seu editorial.A tese é bastante simples: o Governo Federal teria contratado milhares de servidores por motivos políticos, e, com isso, beneficiado sindicatos que lhe são favoráveis. O mesmo raciocínio explicaria os reajustes concedidos ao longo dos últimos 8 (oito) anos.Com esse objetivo, “O Globo” resolveu usar, a título de exemplo, as carreiras da Advocacia Geral da União (AGU), apresentando seus membros como grandes beneficiários do que seria o assim referido inchaço, seja em termos salariais, seja em termos de contratações.
Para quem conhece, de perto, o serviço público federal, especificamente a situação, inclusive remuneratória, das carreiras jurídicas no Brasil (Procuradores, Juízes, Promotores, Defensores etc), o esforço de “O Globo” seria risível, não fosse o fato de que, infelizmente, milhares de leitores estão, agora, simplesmente desinformados e servidores públicos concursados, cujas funções são fundamentais para o Estado brasileiro, reduzidos à condição de apaniguados políticos, com todas as consequências negativas, inclusive morais, que tal imagem carrega.
Apesar de “O Globo” possuir uma linha editorial tradicionalmente crítica ao serviço público em geral, o grau de virulência e os adjetivos utilizados permitiram transparecer o evidente objetivo de atacar, politicamente, o Governo atual, usando as surradas teses do aparelhamento do Estado e do “inchaço da máquina” como pretexto.
A tese do aparelhamento político no caso das contratações, ressalte-se, por concurso público, padece, evidentemente, de lógica. Para alcançar tal objetivo, seria preciso imaginar que todos os concursos promovidos na esfera federal nos últimos 7 (sete) anos foram fraudados.
Caso contrário, seriam aprovados em concurso – como, em verdade, são – pessoas dos mais diversos e variados matizes ideológicos, muitos, inclusive, eleitores da oposição. De fato, vários Procuradores da Fazenda Nacional, por exemplo, se declaram eleitores da oposição, muitos (eleitores da oposição ou não) exerceram cargos de confiança na Advocacia Pública Federal tanto no atual governo, quanto no Governo Fernando Henrique Cardoso.Certamente, essa situação ocorre em todos os setores onde há carreiras de estado organizadas e com acesso aos cargos de direção superior, e é bom para o País que assim seja.
A existência de servidores capazes de participar de mais de uma administração em cargos de confiança é uma importante demonstração de amadurecimento institucional e profissionalismo, posto que ao servidor público de carreira não cabe julgar o mérito das políticas públicas, mas zelar por sua aplicação nos limites da Lei.Em suma, não resiste a um mínimo de análise isenta a tese sustentada por “O Globo” em relação à contratação de servidores de carreira concursados. Muito ao revés, a contratação de servidores por concurso público é o caminho mais moderno, democrático, justo e republicano que o atual Governo, ou qualquer outro, poderia seguir.
É, sobretudo, a trilha que a Carta Política de 1988 elegeu.O concurso público assegura que os altos postos da administração possam ser alcançados por qualquer um que se disponha a estudar muito, seja branco, negro, mulher, homem, rico, pobre, petista ou tucano.Ainda no tema do suposto inchaço, tome-se como exemplo a situação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), órgão que possui subordinação técnica e jurídica ao Advogado Geral da União.As amplas atribuições da PGFN e de seus Procuradores incluem, principalmente, a representação da União em causas fiscais, a cobrança judicial e administrativa dos créditos tributários e não tributários e o assessoramento e consultoria no âmbito do Ministério da Fazenda.
Em outras palavras, aos cerca de 1.800 (mil e oitocentos) Procuradores da Fazenda Nacional cabe, dentre outras muitas atividades da mais absoluta relevância, promover a cobrança de um débito de cerca de R$ 520 bilhões (dívida ativa da União) , em números referentes a 2008, além de representar a União em ações tributárias nas quais estão em disputa outras várias centenas de bilhões de reais, como o famoso caso do crédito prêmio do IPI (disputa de R$ 280 bilhões, ganha pela PGFN) .Tudo somado, é razoável afirmar que os 1.800 Procuradores da Fazenda Nacional têm sob sua responsabilidade algo provavelmente superior a R$ 1 trilhão de dinheiro pertencente ao Erário Público, em última análise, de dinheiro do contribuinte, entendido como aquele que paga, voluntariamente, seus tributos, ou seja, a maioria do Povo brasileiro, que paga tributos na fonte ou de forma indireta, na qualidade de consumidor final.
Todos os dias, esses Procuradores da Fazenda, cuja dedicação é exclusiva por força de lei, ou seja, que não podem advogar para terceiros que não sejam a própria União, defrontam-se com os melhores advogados tributaristas do País, cujas remunerações podem ultrapassar, facilmente, a casa do milhão de reais.Contudo, para “O Globo”, não haveria adjetivos para descrever uma remuneração inicial de pouco mais de R$ 14 mil brutos para integrantes, concursados, das carreiras da AGU (vide a coluna Panorama Econômico de 21 de fevereiro).O valor em questão, que pode parecer realmente elevado para os padrões brasileiros médios, onde ainda impera a informalidade e a exploração da mão de obra barata e não qualificada, não é muito superior ao patamar de remuneração com a qual é brindada, por exemplo, a carreira dos Procuradores do Estado de São Paulo ( R$ 12.331,79) , mas é sensivelmente inferior à remuneração de um Procurador do Distrito Federal (R$ 19.955,40) de um Juiz Federal Substituto (R$ 19.955,40) ou de um Procurador da República (R$ 21.505,00) .
É evidente, portanto, em uma comparação entre carreiras da área jurídica, que não há nada de aberrante ou anormal no atual patamar remuneratório das carreiras da AGU, máxime quando se constata que o Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 assegurou aos Procuradores da República, em seu art. 29, § 2º, a opção “entre as carreiras do Ministério Público Federal e da Advocacia-Geral da União”, demonstrando de maneira cabal que, sob a ótica constitucional, as duas carreiras estão em patamares equivalentes de relevância e atribuições.Há que se lembrar, ademais, que, por duas vezes, Advogados Gerais da União foram alçados a Ministros do Supremo Tribunal Federal, situação que, sem dúvida, aponta para a insofismável relevância institucional da AGU e, portanto, da compatibilidade entre os vencimentos dos advogados públicos federais e a relevância de suas funções.
Por seu turno, as críticas de “O Globo” relacionadas à contratação de advogados públicos, por meio de concursos, insista-se, são igualmente infundadas e injustas.Primeiramente, é preciso lembrar que, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, ao revés do que hoje ocorre, havia, de fato, muitos Procuradores da Fazenda Nacional nomeados sem concurso, que exerciam o cargo de Procurador Seccional da Fazenda Nacional em vários estados da Federação.Esses Procuradores, cuja remuneração fixa era maior do que a dos Procuradores concursados – graças à Medida Provisória n. 43/2002, da lavra do então Presidente Fernando Henrique Cardoso – tinham acesso amplo a dados fiscais de contribuintes e controlavam boa parte da Divida Ativa da União, só havendo sido exonerados já no Governo Lula, por determinação do então Advogado Geral da União, Ministro Álvaro Augusto Ribeiro da Costa.Portanto, no âmbito da PGFN, pode-se afirmar que as nomeações sem concurso público ocorreram durante o governo Fernando Henrique e cessaram no início do Governo Lula. Esse é o fato.Por outro lado, havia, em 2002, 814 (oitocentos e quatorze) cargos ocupados de Procurador da Fazenda Nacional, sendo a arrecadação total do órgão no valor de R$ 6.865.964.306,44 , enquanto em 2008, a arrecadação total alcançara R$ 17.536.062.718,60 , para um quadro de 1.785 Procuradores .
É curioso notar que ao final de 2003, primeiro ano do Governo Lula, já havia 1.054 Procuradores da Fazenda Nacional concursados e a arrecadação da PGFN, por seu turno, subira para R$ 10.013.861.421,40 , ou seja, R$ 3.147.897.114,96 a mais de arrecadação para apenas 240 novos Procuradores.Esses números demonstram claramente que, após as novas contratações, denunciadas por “O Globo” como prova de nefasto inchaço, o desempenho da PGFN melhorou muito, tanto no aspecto quantitativo como no qualitativo, levando ao perceptível aumentando da eficiência e da eficácia da cobrança forçada de débitos tributários e não tributários e da defesa da União em Juízo.
Um contribuinte menos atento poderia achar que esse resultado, afinal de contas, apenas beneficiaria o Estado. Há, contudo, nesse raciocínio, um equívoco evidente.
A Administração Tributária como um todo e a PGFN, em particular, atuam para igualar todos os contribuintes perante a Lei. Igualam os que sonegam ou não pagam seus tributos em dia àqueles que os pagam pontualmente, buscando garantir que o peso dos tributos não recaia apenas sobre aqueles que não conseguem fugir da tributação, como a classe média assalariada e os mais pobres, que sofrem com o peso dos tributos indiretos, na condição de consumidores finais.
Agindo assim, a Administração Tributária ajuda a equilibrar as contas do Estado sem aumento efetivo da carga tributária. Como sabe qualquer síndico de prédio, quando todos pagam, todos pagam menos.Promove, ainda, o combate à concorrência desleal levada a efeito por empresas que usam a sonegação sistemática para conquistar mercados à custa daquelas que lutam para manter em dia suas obrigações fiscais.
Há, por isso, um benefício evidente para o cidadão comum, que, dessa forma, deixa de ser chamado a contribuir ainda mais para compensar a evasão promovida por aqueles que não pagam seus tributos.Em síntese, o exemplo escolhido por “O Globo” para seu ataque não poderia ter sido mais infeliz e desinformado.É claro que não se é obrigado a concordar com essa ou aquela remuneração, especialmente quando essas remunerações são pagas com dinheiro público.
É evidente também que a imprensa deve estar atenta e fiscalizar todos os Governos e todos os Poderes, mas isso não pode significar uma carta branca para enxovalhar a reputação de carreiras dignas e honestas, compostas por homens e mulheres que prestaram concursos públicos difíceis e concorridos e que todos os dias lutam com imensas dificuldades pelo bem e pelo progresso do País e de seu Povo.
Há que lamentar que um importante órgão de imprensa, de quem se espera um mínimo de compromisso com os fatos, não procure empreender um debate de forma mais madura, equilibrada e construtiva, adotando um viés eivado de preconceito e desinformação.

9 de fevereiro de 2010

Sempre a confusão entre o público e o privado.

Faz um bom tempo que não posto. Entre festas de fim de ano, férias, trabalhos do mestrado, volta às aulas e o lazer, afinal ninguém é de ferro, as postagens restaram ausentes.
Bem, mas como primeiro post de 2010 eu gostaria de chamar atenção para uma notícia de hoje do Migalhas:
Bagatela ?

Não é crime um delegado da PF usar carro, motorista e agente da corporação para procurar um apartamento para alugar. O entendimento é do juiz Fernando Marcelo Mendes, da 10ª vara Federal Criminal de SP, ao recusar uma acusação do MP contra o delegado Severino Alexandre de Andrade Melo, ex-diretor-executivo da PF em SP. Para o juiz, o ato não é crime, pois não trouxe prejuízo significativo à PF. Se a moda pega...
Já falei sobre a importância do princípio da insignificância no direito penal, a questão da fragmentariedade, etc., mas interpretações sobre os tipos penais que envolvem a Administração Pública não segue a mesma regra dos demais delitos, não é STJ?

RECURSO ESPECIAL. PENAL. PECULATO. AUTO DE AVALIAÇÃO DIRETA. PERITOS COM CURSO SUPERIOR. AUSÊNCIA DE QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. NÃO-DESCARACTERIZAÇÃO DO DELITO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BEM JURÍDICO TUTELADO: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. In casu, trata-se de auto de avaliação direta e não laudo pericial propriamente dito, tendo sido a avaliação realizada por peritos de nível superior. O fato de não constar do laudo, a qualificação técnica dos peritos evidencia mera irregularidade, que não descaracteriza o delito, uma vez que a avaliação dos bens apreendidos não exige, de forma alguma, maiores conhecimentos técnicos ou científicos, bastando uma simples pesquisa de preços de mercado.
2. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.
3. Indiscutível a sua relevância, na medida em que exclui da incidência da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ação e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma ínfima afetação ao bem jurídico.
4. Hipótese em que o recorrente, valendo-se da condição de funcionário público, subtraiu produtos médicos da Secretaria Municipal de Saúde de Cachoeirinha-RS, avaliados em R$ 13,00.

5. "É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, porque a norma busca resguardar não somente o aspecto patrimonial, mas moral administrativa, o que torna inviável afirmação do desinteresse estatal à sua repressão"(Resp 655.946/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, DJ 26/3/07)
6. Recurso especial improvido.
(REsp 1062533 / RSRECURSO ESPECIAL2008/0117945-0; Relator(a) Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128); Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA; Data do Julgamento 05/02/2009; Data da Publicação/Fonte-->DJe 09/03/2009)
Pois bem, a sentença então deve ser reformada e o processo instaurado.
Mas o que eu queria falar sobre o caso, além do aspecto jurídico, é sobre como as relações entre o público e o privado no Brasil confundem-se, motivando condutas como a do delegado federal e interpretações como a do juiz mencionados na nota.
A utilização de cargos e suas benesses para fins estritamente particulares como cultura que adquire ares de admiração para boa parte da burocracia estatal e difunde-se como comportamento "normal" para boa parte da sociedade, com a simplista justificativa de que "sempre foi assim", da mesma forma que os vícios do nepotismo, apadrinhamento, troca de votos por pequenos agrados, tem raízes profundas na construção dos sujeitos políticos no país, que a cabam por identificar-se com esse tipo de prática. Uma boa fonte sobre essas raízes está em Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre.
Indo mais atrás na História, pode-se observar que enquanto na Grécia antiga a formação ética do cidadão se dava no espaço público, político por natureza, afastadas as variáveis morais individuais, sujeitas às influências do relacionamento do cidadão com sua família, filhos, escravos, propriedades ou comércio; pelo que só assim o zoon politikon poderia constituir-se e agir com a esperada isenção, a formação do sujeito político do Estado moderno partiu da individualidade para construir o chamado "eu coletivo", diferença que pode revelar onde está a origem de muitos dos problemas hoje discutidos na gestão da coisa pública.

A inexorável aproximação entre espaço público e privado, promovida com a crítica iluminista ao Estado absolutista, sob os mais nobres argumentos de respeito às liberdades individuais e à expressão livre do pensamento, direitos fundamentais de primeira geração, é também causa da hoje criticada utilização do espaço público como privado.
Continuemos então brigando por avanços...