9 de fevereiro de 2010

Sempre a confusão entre o público e o privado.

Faz um bom tempo que não posto. Entre festas de fim de ano, férias, trabalhos do mestrado, volta às aulas e o lazer, afinal ninguém é de ferro, as postagens restaram ausentes.
Bem, mas como primeiro post de 2010 eu gostaria de chamar atenção para uma notícia de hoje do Migalhas:
Bagatela ?

Não é crime um delegado da PF usar carro, motorista e agente da corporação para procurar um apartamento para alugar. O entendimento é do juiz Fernando Marcelo Mendes, da 10ª vara Federal Criminal de SP, ao recusar uma acusação do MP contra o delegado Severino Alexandre de Andrade Melo, ex-diretor-executivo da PF em SP. Para o juiz, o ato não é crime, pois não trouxe prejuízo significativo à PF. Se a moda pega...
Já falei sobre a importância do princípio da insignificância no direito penal, a questão da fragmentariedade, etc., mas interpretações sobre os tipos penais que envolvem a Administração Pública não segue a mesma regra dos demais delitos, não é STJ?

RECURSO ESPECIAL. PENAL. PECULATO. AUTO DE AVALIAÇÃO DIRETA. PERITOS COM CURSO SUPERIOR. AUSÊNCIA DE QUALIFICAÇÃO TÉCNICA. NÃO-DESCARACTERIZAÇÃO DO DELITO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BEM JURÍDICO TUTELADO: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. In casu, trata-se de auto de avaliação direta e não laudo pericial propriamente dito, tendo sido a avaliação realizada por peritos de nível superior. O fato de não constar do laudo, a qualificação técnica dos peritos evidencia mera irregularidade, que não descaracteriza o delito, uma vez que a avaliação dos bens apreendidos não exige, de forma alguma, maiores conhecimentos técnicos ou científicos, bastando uma simples pesquisa de preços de mercado.
2. O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima.
3. Indiscutível a sua relevância, na medida em que exclui da incidência da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ação e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma ínfima afetação ao bem jurídico.
4. Hipótese em que o recorrente, valendo-se da condição de funcionário público, subtraiu produtos médicos da Secretaria Municipal de Saúde de Cachoeirinha-RS, avaliados em R$ 13,00.

5. "É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, porque a norma busca resguardar não somente o aspecto patrimonial, mas moral administrativa, o que torna inviável afirmação do desinteresse estatal à sua repressão"(Resp 655.946/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, DJ 26/3/07)
6. Recurso especial improvido.
(REsp 1062533 / RSRECURSO ESPECIAL2008/0117945-0; Relator(a) Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA (1128); Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA; Data do Julgamento 05/02/2009; Data da Publicação/Fonte-->DJe 09/03/2009)
Pois bem, a sentença então deve ser reformada e o processo instaurado.
Mas o que eu queria falar sobre o caso, além do aspecto jurídico, é sobre como as relações entre o público e o privado no Brasil confundem-se, motivando condutas como a do delegado federal e interpretações como a do juiz mencionados na nota.
A utilização de cargos e suas benesses para fins estritamente particulares como cultura que adquire ares de admiração para boa parte da burocracia estatal e difunde-se como comportamento "normal" para boa parte da sociedade, com a simplista justificativa de que "sempre foi assim", da mesma forma que os vícios do nepotismo, apadrinhamento, troca de votos por pequenos agrados, tem raízes profundas na construção dos sujeitos políticos no país, que a cabam por identificar-se com esse tipo de prática. Uma boa fonte sobre essas raízes está em Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre.
Indo mais atrás na História, pode-se observar que enquanto na Grécia antiga a formação ética do cidadão se dava no espaço público, político por natureza, afastadas as variáveis morais individuais, sujeitas às influências do relacionamento do cidadão com sua família, filhos, escravos, propriedades ou comércio; pelo que só assim o zoon politikon poderia constituir-se e agir com a esperada isenção, a formação do sujeito político do Estado moderno partiu da individualidade para construir o chamado "eu coletivo", diferença que pode revelar onde está a origem de muitos dos problemas hoje discutidos na gestão da coisa pública.

A inexorável aproximação entre espaço público e privado, promovida com a crítica iluminista ao Estado absolutista, sob os mais nobres argumentos de respeito às liberdades individuais e à expressão livre do pensamento, direitos fundamentais de primeira geração, é também causa da hoje criticada utilização do espaço público como privado.
Continuemos então brigando por avanços...

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