Tenho lido notícias e artigos sobre a conclusão do julgamento do RE 466.343/SP no STF, sobre a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel sob qualquer modalidade (contrato de depósito, arrendamento mercantil e depósito judicial) que trazem importantes questionamentos sobre o possível nascimento de um novo modelo de Estado, o constitucional internacionalista ou transnacional.
Um deles é assinado pelo criminalista Luis Flávio Gomes, disponível do JusNavigandi (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12081) onde é defendida e difundida a idéia da necessidade da "morte" ao juiz legalista sob o fundamento de que o operador jurídico "moderno" deve ter consciência de que a lei é apenas um instrumento onde imperam as normas constitucionais e os tratados internacionais, especialmente os que versem sobre direitos humanos, ressaltando ainda a existência do princípio pro homine, como vetor interpretativo em casos que tais.
Destaco os três últimos parágrafos do texto, que trazem, em suma, a idéia do posicionamento adotado pelo autor, inclusive com os "jargões" pejorativos imputados ao chamado juiz legalista, vejamos:
"O Direito, como se vê, não se confunde com a lei. Ele começa com o constituinte e termina com a jurisprudência dos tribunais (nacionais e internacionais). A lei é uma parte desse oceano. Pode ser válida ou não: tudo depende da sua compatibilidade com as normas superiores (internacionais e constitucionais).
Convenhamos: nenhum jurista no Brasil pode ignorar a histórica decisão do STF de 03.12.08: essa data tornou-se muito importante para nós. Não só porque acabou com a prisão civil do depositário infiel, senão, sobretudo, porque inaugurou um novo modelo de Estado, de Direito e de Justiça: o constitucional internacionalista.
Isso implica que o juiz já não pode se contentar em conhecer apenas as leis e os códigos. Esse modelo de juiz (legalista positivista) está morto. Será cada vez mais reconhecido como jurássico (ou dinossáurico). O que se lamenta (em pleno século XXI) é que ele está morto mas não foi (ainda) sepultado! A atual (assim como as futuras gerações) conta com o dever de extirpar do nosso mundo jurídico esse juiz legalista. Marcação sob pressão nele, esse é o nosso desafio! O STF fez a parte dele. Todos os demais operadores jurídicos, agora, devem fazer a sua, posto que é assim que caminha a humanidade."
Bom, a afirmação de que o Direito não se confunde com a lei não constitui qualquer novidade, assim como a constatação de que o juiz cria o direito a partir da interpretação dos textos normativos e construção da decisão no caso concreto, como afirma Cappelletti em "Juízes legisladores?", mas a verificação in concreto de casos que indiquem a intensificação dessa perspectiva é suficiente para dizer que se inaugura no Brasil um novo modelo de Estado de Direito? E que esse modelo é o constitucional internacionalista? Em que consiste esse modelo de Estado?
Essas perguntas não encontram resposta no texto, e nem mesmo nos tadicionais e modernos manuais de teoria do estado e direito constitucional, mas creio que esteja intimamente ligadas às questões de relativização da soberania dos Estados nacionais, adoção do direito comunitário e prevalência dos tratados sobre os ordenamentos internos ou mesmo à teoria intercultural da Constituição, como trata o Prof. Bruno Galindo em sua tese de doutorado.
Porém, em que pese a importância da decisão tomada pelo STF no RE 466.343/SP, histórica, de fato, considerando a expressa previsão do constituinte de 1988 pela possibilidade de prisão do depositário infiel, é de se questionar se ela realmente instaura uma "nova era" ou um novo Estado, e se a configuração deste exige, como faz parecer o texto, uma verdadeira "caça às bruxas" aos juízes ditos legalistas/positivistas.
Como se sabe, a lei ocupa cada vez menos espaço de influência na formação da convicção do julgador desde o acolhimento da jurisprudência de valores e sobreposição da normatividade dos princípios nos ordenamentos jurídicos ocidentais, tanto que alguns chegam a afirmar, como se fosse possível medir com um sismógrafo, que a lei hoje é apenas 8% da decisão judicial, constistindo os demais 92% na pré-compreensão do julgador, da qual integram as crenças pessoais, sentimentos, emoções, pragmatismo, dentre outras razões.
Nessa quadra dos acontecimentos, e quando pesquisas e mais pesquisas sócio-jurídicas apontam que o binômio jurisdição constitucional/direitos fundamentais não encerra em si mesmo a solução para todos os nossos problemas, e pior, às vezes criam outros, soa precipitado decretar morte, sob o tom de grito de guerra, aos juízes legalistas/positivistas que por apego à lei (no sentido kelseniano) adquiriram a alcunha de jurássicos ou dinossáuricos.
Não sou pessimista ou cético quanto às inúmeras possibilidades de êxito da justiça constitucional em relação à garantia e eficácia dos direitos humanos nos planos nacional e internacional, mas cair no oba-oba de decretar a vigência de um novo modelo de Estado a partir de uma decisão do STF, repito, histórica e marcante na proteção das liberdades individuais, parece ser um tanto precipitado, e porque não dizer também equivocado.
8 comentários:
DOUGLAS,
REALMENTE O ARTIGO DO PROFESSOR LUIS FLÁVIO PECA PELO EXCESSO, ESPECIALMENTE SE CONSTATADA A SUA INTENÇÃO DE INTESIFICAR O DIREITO PENAL GARANTISTA, NA MEDIDA EM QUE SEU INTERESSE REPRESENTA A DEFESA DOS "RÉUS". COM CERTEZA, A DECISÃO DO STF VAI SER TIDA COMO MARCO INICIAL PARA O RECONHECIMENTO DE UMA ORDEM INTERNACIONAL, ASSEGURADA PELA CF, MAS É APENAS UM PONTO DE UMA TRAJETÓRIA, A QUAL DEVE SER CONSTRUÍDA POR CADA APLICADOR DO DIREITO NO DIA-A-DIA. AINDA, FAZ-SE NECESSÁRIO CONCRETIZAR O QUE CHAMAMOS DE ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, O QUE FALAR ENTÃO DE ESTADO CONSTITUCIONAL INTERNACIONALISTA...MERO OBA-OBA...
Concordo, acho precipitado falar em Estado Transnacional.
Aproveitando que você tocou no direito penal garantista, tão bem tratado por Luigi Ferrajoli e Roxin, como devemos esperar a decisão do STF sobre o poder investigatório do Ministério Público?
DOUGLAS,
NO TOCANTE AOS PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MP, PARA MIM, HÁ ASSENTO CONSTITUCIONAL E CERTA RAZOABILIDADE, NÃO SENDO ATRIBUIÇÃO EXCLUSIVA DAS POLÍCIAS JUDICIÁRIAS.
OBSERVE-SE QUE OS ARTS. 129, VI E VIII, DA CF/88 C/C LC 75/93 CONFEREM AO PARQUET ATRIBUIÇÃO PARA REQUISITAR INQUÉRITOS E INVESTIGAÇÕES, SENDO ESTE O TITULAR DA AÇÃO PENAL E A QUEM É ATRIBUÍDA A DECISÃO ACERCA DO CONVENCIMENTO DO FATO DELITUOSO, DENUNCIANDO-O OU NÃO.
LOGO, A FIM DE EFETIVAR SEU PRÓPRIO CONVENCIMENTO DEVEM SER ASSEGURADOS A ESTE ÓRGÃO OS MEIOS NECESSÁRIOS.
NESTE SENTIDO, A CF ASSEGUROU O ROMPIMENTO COM O AUTORITARISMO DA ORDEM ANTERIOR, A FIM DE ESTABELECER UMA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ, EM QUE OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO NÃO ESTARIAM RESERVADOS EXCLUSIVAMENTE A POLÍCIA.
ADEMAIS, NEM O MP, NEM A POLÍCIA, NEM TAMPOUCO O JUDICIÁRIO ESTÃO ISENTOS DE CRÍTICAS E DO COMENTIMENTO DE POSSÍVEIS ARBITRARIEDADES NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES, O QUE É AFASTADO PELOS FREIOS DE CADA PODER.
OUTROSSIM, O PODER INVESTIGATÓRIO DO MP NÃO DEVE SER ENTENDIDO COMO MAIOR DO QUE AS PRÓPRIAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, QUE ASSEGURAM, INCLUSIVE, A RESERVA EXPRESSA DA CLÁUSULA DE JURISDIÇÃO.
APESAR DA MINHA OPINIÃO, ACREDITO QUE O STF VAI SE POSICIONAR CONTRA, RATIFICANDO OS ENTENDIMENTOS ANTERIORES DE PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO DE INVESTIGAÇÕES PRELIMINARES À AÇÃO PENAL PELO MP.
DOUGLAS,
O QUE VOCÊ ACERCA DO ASSUNTO?
Concordo com a sua opinião.
Em que pese a necesidade de qualquer processo judicial democrático assegurar as mais amplas garantias de defesa ao acusado, o que está positivado em nosso texto constitucional, a participação de membros do MP na fase inquisitorial não tem se mostrado uma prática danosa aos direitos individuais dos investigados, na minha modesta opinião.
Não tenho lido muita a respeito, mas nunca vi a imprensa divulgar um caso em que membros do MP tenham se utilizado do seu "poder" investigatório para coagir a defesa ou a produção de prova pelo investigado. Ademais a discussão gira apenas nos casos em que grandes "figuras" são acudados, como nos crimes do colarinho branco, evasão de divisas, crimes contra o patrimônio público, organização criminosa, etc...tipos penais em que a força do crime tem o poder de maquiar relações jurídicas; corromper policiais, etc...
Entre as duas correntes prefiro a defere ao MP a possibilidade de participar das investigações, não conduzi-las sozinho, pois, na realidade criminosa vista todos os dias na grande mídia, é melhor ampliar do que restringir as possibilidades de legitimados a interferir na atividade do crime.
Acho até que o tema merece um post, mãos a obra então.
É Douglas mais uma vez sua opinião apresenta-se interessante, e o mais importante fundamentada no bom senso.
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