27 de janeiro de 2009

Por uma visão crítica da comunidade jurídica brasileira.

Acaba de ser lançado o livro "Crônicas sobre a elite brasileira - A justiça dos outros" (Ferrari Editora e Artes Gráficas - 98 p.), que eu ainda não li, mas ainda assim recomendo.

O livro traz uma série de relatos verídicos acontecidos no cotidiano de operadores jurídicos do país que revelam como o ensino do direito, a sua interpretação e aplicação, além da difusão do discurso jurídico, estão permeados por instituições e práticas adotadas para preservar interesses da elite brasileira ou dos próprios membros das carreiras jurídicas.
O livro segue a linha de uma outra publicação que considero interessante, da autoria de Roberto Wanderley Nogueira, cujo título é bem sugestivo "Justiça Acidental - nos bastidores do Poder Judiciário", publicado pela Fabris Editor.

A autora, Marly A. Cardone é Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Uiversidade Federal do Rio de Janeiro. Professor -Asssistente-Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Seguem algumas palavras da própria autora sobre o livro.
"Todos os fatos aqui narrados aconteceram. Sua interpretação é criação minha.
Quando tenho documento que me permite provar o alegado dou os nomes dos atores e, nesta hipótese, as histórias são mais longas e minuciosas. No caso contrário, ofereço-as como um 'cartum', ou seja, são curtas e enxutas, falam por si mesmas, desnecessárias explicações e detalhes.
Dividi o livro em duas partes, a primeira denominada Adagio Sostenuto, que contém as primeiras narrativas; a segunda chamo de Prestissimo. Em ambos os casos inspirei-me na denominação dos andamentos musicais.
Datei algumas histórias mas, na verdade, elas são atemporais, poderiam ter acontecido em qualquer momento, inclusive nestes últimos anos, eis que evoluímos muito pouco em matéria de ética e seriedade.
Quando comecei a trabalhar com o 'Direito' e a 'Universidade' considerava que as pessoas exercentes de profissões nestas áreas eram, acima de tudo, idealistas e sinceras.
Convivo há mais de quatro décadas, contando meu tempo de estudante, dentro do círculo de produção do conhecimento jurídico – a universidade, especialmente as escolas de Direito – e, por extensão, as organizações da 'elite' jurídica, como associações de estudos ou profissionais, o poder judiciário. Dentro deste período trabalhei por 35 anos no escritório e na Universidade de São Paulo com o Mestre A. F. Cesarino Junior, não sendo de estranhar que muitas histórias o tenham como personagem principal ou figurante.
(...)
Características como auto-controle e impulsividade, infantilidade, objetividade, distinção ética, vaidade, desenvolvimento da inteligência e outras são facilmente identificáveis em dedicatórias de livros, em despachos de juízes ou qualquer outro manuscrito. A quem tem formação em grafologia é impossível não tirar uma primeira conclusão ao lançar os olhos sobre um texto manuscrito.
Alguém dirá que tudo o que estou relatando é comum em qualquer meio em que as pessoas desejam progredir e eu advirto que, no meio universitário-jurídico e judiciário, é igual, há pouco idealismo.
Adoram pertencer a uma 'academia' e, no círculo jurídico, as há para todos os ramos do direito, mais de uma, municipais, estaduais, nacionais, ibero-americanas, latino-americanas, luso-brasileiras e o mais que possa adjetivá-las. Ostentam os títulos como se, de fato, eles os tornassem imortais. Alguns disputam lugar em três ou quatro academias, para garantir melhor sua 'imortalidade'.
Antes que alguém menos avisado diga que tenho 'dor de cotovelo' porque meu nome jamais foi aprovado numa dessas organizações – como já me disseram – informo que recusei 'co-patrocinar' a criação da Academia Nacional de Direito do Trabalho quando o advogado do Rio de Janeiro, Albino Lima, dirigiu correspondência a várias pessoas solicitando numerário para aquele fim, o que geraria direito a uma 'cadeira' naquela organização (tenho troca de correspondência a respeito). Pertenci à Academia Paulista de Direito eis que, proposto meu nome por um de seus membros, foi ele aprovado. Dela saí quando avaliei que seria melhor destinar meus esforços para uma só instituição, de que era presidenta no momento, o Instituto Brasileiro de Direito Social. O que acrescenta, na vida de cada um, fazer parte de uma quantidade enorme de instituições e nada fazer por elas e por seus objetivos?
Títulos honoríficos, então, existem a mancheias, pois quase todos os tribunais os distribuem, medalha disto e daquilo. Pergunto-me por que uma pessoa que, na grande maioria dos casos, se limitou simplesmente a exercer sua atividade profissional, sem acrescentar um grão de areia em benefício da coletividade, merece uma medalha! E quase sempre com dinheiro público!
Por este critério, todo peão honesto também a mereceria.
E as galerias de ex-presidentes, que todos os tribunais e associações ostentam, com fotografias enfileiradas!? Não são um tributo injustificável à vaidade, no primeiro caso com o dinheiro público?
Reconheço que os fatos que têm sido divulgados, ultimamente, por todos os meios de comunicação, que abrangem pessoas ligadas ao círculo que aqui retrato, fazem parecer meus relatos bem menos graves. Todavia, é apenas uma questão de grau....." Marly A. Cardone

2 comentários:

Anônimo disse...

Douglas,
Adorei a dica e pretendo adquiri-lo, pois deve se constitui de relatos interessantes acerca de uma realidade que nós, apesar do pouco tempo no tocante à experiência da autora, já percebemos.
Quem não ingressou na Faculdade de Direito acreditando no discurso que a todos é dado participar e construir a Justiça?
Ocorre que antes mesmo de deixarmos a graduação, e intensamente após ingressamos na vivência do universo jurídico, percebemos que a atividade judiciária em sua grande maioria reflete repetição de vaidade e mantença de poder.
Ao cidadão que pretende inovar, conceber novas interpretações ao Direito faz-se necessário antes de tudo repetir o bá a bá dos que acham que detém legitimidade exclusiva para dizer e compreender o direito.
Após reza pela cartilha da elite do judiciário, percebe-se que sua inocência e ideal de Justiça se desgastaram com o tempo e da sua visão inocente resta acreditar que ainda há um espaço para exposição de suas idéias.
Entretanto, ao tentar expô-las, quer na pós- academia ou mesmo no âmbito do Poder Judiciário, o que se observa é a incessante tentativa de lutar contra a maré.

Anônimo disse...

Douglas,
Acabei de ler um texto que reflete bem o papel do judiciário e da doutrina na atualidade. Título: O método e a verdade: o aprendizado constitucional e a universidade alemã (Juliano Z. Benvindo). Trata-se do papel da corte constitucional alemã:
“O pai de Tamara, cidadã turca de 15 anos, faz um pedido à direção da escola de sua filha em uma pequena cidade alemã. Em síntese, afirma que, segundo sua religião, a filha não poderia juntamente com outros jovens homens praticar esportes. Apresenta, para tanto, passagens do Corão e um certificado do centro islâmico confirmando que Tâmara professa a fé islâmica.
A escola, no entanto, entende que não se trata de nenhum caso especial previsto em lei e que, portanto, a ausência de Tamara nas aulas de educação física não era justificada. Com o uso das roupas apropriadas, ela poderia participar de todas as atividades físicas, exceto natação. Além do mais, por viver na Alemanha, ela deveria se integrar aos costumes e crenças prevalentes da sociedade alemã.
Inconformado, o pai recorre às vias judiciais e o caso chega à Corte Constitucional Alemã. Terá ele êxito?”
Com leves modificações, esse foi um dos exercícios apresentados na disciplina Direito Público II – Direitos Fundamentais na Universidade Humboldt de Berlim, em que casos hipotéticos são levados à análise dos alunos para, então, verificarem se as circunstâncias ensejam ou não o exame de seu mérito pela Corte Constitucional. Em poucas linhas, deseja-se saber se o caso é passível de análise e como a Corte, uma vez tendo admitido o pedido, examinará a questão. Essa análise resultará em dois tópicos fundamentais: 1) o exame das questões processuais envolvendo o pedido; 2) o estudo do principal método de resolução de conflitos adotado na Alemanha: o princípio da proporcionalidade.
[...]
Essa forma de ensino decorre de uma forte modificação estrutural do ensino alemão, que, cada vez mais, é reproduzido nas universidades como um direito de casos cuja principal fonte são as decisões e métodos da Corte Constitucional. A que razão se pode creditar essa modificação?
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Bastante ativista, na medida em que trata como seu campo de responsabilidade e autoridade não apenas problemas jurídicos, mas também sociais, econômicos e políticos, a Corte Constitucional tornou-se referência indispensável para o exame dos principais dilemas da sociedade alemã.
Resultado de um controverso desenvolvimento histórico que não apenas favoreceu a descrença na política tradicional, como também requereu o surgimento de uma nova instituição que pudesse ocupar o vácuo de legitimidade após a Segunda Guerra Mundial, a Corte Constitucional alemã passou a atuar fortemente em diferentes temas sociais, muitas vezes desacompanhada da critica, até porque a doutrina estava enfraquecida no pós-guerra. Nesse contexto, ela pôde estender sua autoridade para os mais diferentes assuntos da vida social e, ao mesmo tempo, desenvolver teorias e metodologias que davam conta dessa assunção de poder.
[...]
No campo metodológico, a idéia de balanceamento com o viés político também se fortificou, quando, cada vez mais, os conflitos não apenas se davam na disputa de direitos individuais, mas também no âmbito de direitos individuais em conflito com propósitos úteis e necessários para a sociedade como um todo. É daí que nasceu a aplicação do princípio da proporcionalidade com essa assunção valorativa e objetiva, que, sem dúvida, causa perplexidade ao princípio da separação dos poderes.
Por outro lado, essa expansão se deu com ares de admiração pelo mundo jurídico. Dificilmente juízes decidem conflitos de direitos fundamentais sem adotar essa postura valorativa na aplicação do princípio da proporcionalidade. A academia passou também a explorar problemas constitucionais por intermédio dessa metodologia.
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Ao invés de antecipar problemas e mesmo apresentar um papel predominante na transformação do direito constitucional por meio de um olhar reflexivo sobre o direito como um todo, ela se contenta em fazer conexão entre os diferentes casos, avaliar a personalidade dos juízes e as relações políticas que estão por trás de suas funções. A doutrina, então, ao invés de abalar a autoridade, que é um de seus principais papéis, acaba por deificar a autoridade.
[...]
Inverte-se assim sua função, que, ao invés de antecipar problemas, passa a seguir os passos das definições trazidas pela Corte. Suas decisões tornam-se a nova lei para a doutrina.
Porém, é preciso voltar ao problema. Eis que o caso Tamara é, de fato, um caso complexo e exige uma forte compreensão do direito constitucional. Mas como resolvê-lo? Um estudante alemão buscaria examinar o caso, primeiramente, sob a ótica da admissibilidade processual. Depois, o exame do mérito é realizado. Nesse momento, ele buscaria trabalhar o problema em torno do conflito de princípios: de um lado, a liberdade religiosa; do outro, os valores sociais que representam a concepção dominante de sociedade. Esse conflito seria instrumentalizado mediante o princípio da proporcionalidade e, em particular, o balanceamento. Nesse ponto, ele tentaria buscar um equilíbrio entre o princípio da liberdade religiosa e o valor social. Com diferentes argumentos, ele poderia chegar a uma ou outra conclusão. Correta? Sim, se assumida essa tradição constitucional. Afinal, foram apresentados argumentos, a metodologia foi bem empregada, exatamente como ela se desenvolve na Corte Constitucional. Mas será que, ao fazer isso, ele aprendeu direito constitucional? Ou será que foi absorvido por uma concepção de verdade? Aplicar métodos e fórmulas, balancear valores é, sim, um caminho. Mas até que ponto se aprende direito constitucional sem o exercício da crítica e sem o abalo de “verdades” e da autoridade?”